Serenidade

Uma Espiritualidade para e do Doente Terminal

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UMA ESPIRITUALIDADE PARA E DO DOENTE TERMINAL

Palestra proferida pelo Dom Hildebrando Brito de Miranda – outubro de 2006 no 1º Simpósio de Bioética, realizado em Jundiaí

Premissa básica para este nosso encontro é que eu não vos falo como um interlocutor ciente de questões médicas ou bioéticas relacionadas à morte, mas sim como monge-sacerdote beneditino, cuja regra de vida prega termos diante dos olhos todos os dias a morte.

Uma segunda premissa é que, por motivos óbvios, todo o teor espiritual que este encontro contém é debitária da espiritualidade cristã católica.

Uma última premissa é que estou ciente que para grande parte dos pacientes terminais, este discurso é inútil, porém para uma pequena parcela, ainda que ínfima, é possível fazer a passagem da cura para o cuidado e proporcionar para estes, uma verdadeira boa-morte (apesar da estranheza do conceito), uma morte que seja manifestação de uma vida com começo, meio e fim, uma vida que conclui-se em um círculo perfeito da existência.

A vida é constituída de paradoxos. A morte é o motor da vida. O correr do tempo, que não se paralisa, é o indicador implacável da proximidade de nosso fim, porém é ele também a dimensão humana que nos faz dar sentido às nossas vidas através de nossas realizações; é o princípio que nos estimula a criar e deixar legados durante a construção de nossa biografia. O mundo contemporâneo, capitalista e consumista, trabalha diariamente com o fator tempo: devemos viver tudo, todos os tipos de experiência agora, enquanto temos tempo e saúde; caso contrário, se não conseguimos esta maximização do aproveitamento de nosso tempo com o lazer e experiências radicais, somos perdedores. A moral e a religiosidade passam a ser relativizadas, ocupando posições inferiores dentro da escala de valores. Desta perspectiva nascem as culturas do lazer e da juventude e a excomunhão da morte. Excomungamos a morte através do tratamento despersonalizado com que a tratamos: morte em sala separada, cercado de aparelhos, a funerária que fará o serviço de preparação do corpo, velório reduzido, falta do período de luto. A morte do ente querido deve ser sublimada rapidamente para que não haja prejuizo do tempo e das realizações dos outros. O paralelismo entre vida e morte foi distorcida para retas divergentes, resultando no desespero consumista, fora de padrões morais e religiosos e, por outro lado, o crescente desespero para com os dramas da vida, a depressão e a falta de um sentido último a dar-se para a existência. O homem contemporâneo abomina a idéia de ter de preparar a sua despedida da vida. Em algumas pesquisas que sondam o assunto morte, e mesmo em conversas despretensiosas sobre o assunto, é perceptível que o senso comum tem como ideal a morte indolor, súbita e durante o sono. Dentro deste quadro geral, devemos entender e enquadrar o doente terminal.

A situação básica que classifica ou identifica o doente como terminal, separando-o assim de outros doentes e mesmo de quaisquer outras pessoas, é o fato de saber-se e/ou sentir-se próximo à morte. Todas as possibilidades de evitar esta vizinhança já se esvaíram ou faliram. A morte é a única certeza de quem vive, pode acercar-se de nós sem avisos prévios, porém esta sombra sempre presente torna-se pouco visível ou sensível pelo brilho de nossa vida: as nossas propostas, projetos, planos; mesmo a mesmice de nosso cotidiano parece ofuscar nossa visão desta sombra incômoda. O doente terminal – jovem ou ancião – vê-se dolorosamente seco, nu e desprotegido: seus antigos projetos agora só lhe causam a sensação de frustração e impotência: seu cotidiano é alterado, repleto de privações e de práticas estranhas, fruto do tratamento para aumentar sua sobrevida ou dar-lhe mais conforto. O desespero da privação da esperança e a agonia de sentir-se morto em vida, incapaz de segurar as rédeas de sua existência apoderam-se de seu tempo ainda restante. Em suma, o doente terminal é visto como um infeliz que foi condenado a digerir todos os sabores amargos do processo de morte. Ele está privado do aparente ideal de morte súbita. Tal sofrimento indescritível gera um turbilhão “des-graçado” de atitudes e/ou omissões da parte de todos os circunstantes ao doente: profissionais da saúde, familiares, amigos e, menos diretamente, da parte dos administradores de instituições ligadas à saúde.

Este quadro de sofrimento comporta em si o seu próprio antídoto amenizador, que promove a possibilidade do alento de todos os implicados. Este será o argumento principal deste nosso encontro.

Após muito refletir sobre o tema, que em realidade, creio ser melhor definido como “Uma possível espiritualidade para e do doente terminal”, lembrei-me de um ensinamento de meu mestre espiritual que dizia: “Olhe sempre para a cruz de Cristo”. Ao contrário do que possa parecer, a intenção não é concluir, com aquele jargão tão famoso, que o paciente terminal deve sofrer porque Jesus Cristo sofreu por nós, e o sofrimento que vivemos é para participarmos da cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Este discurso espiritual tradicional da Igreja Latina, apesar de válida e verdadeira, não cabe, tornou-se inócua e mesmo revoltante para o homem hodierno ocidental ou ocidentalizado que, como já dito, vive a cultura do lazer. Se é necessário sofrer para aproximarmo-nos e imitarmos o Cristo, é melhor abandoná-lo. Em outras palavras, um Deus que exigiria de nós o sofrimento, não é verdadeiro Deus, porque cremos ou gostamos de acreditar que fomos criados para a auto-suficiência e para a vida rica de prazeres e de novidade. Deus, se quer ser Deus para nós, deve ser-nos subserviente, pronto-socorro eficaz e veloz – porque não temos tempo – nas nossas mazelas. Caso contrário é um Deus mesquinho e perturbado que nos quer mal. Obviamente tal leitura não toca a todos os homens ocidentais, porém impera no senso comum.

O que devemos olhar na paixão de Jesus Cristo é, antes de mais nada, sua verdadeira humanidade. Seguindo este ponto de vista, perceber a fenomenologia do processo da paixão que os evangelistas nos descrevem. Premissa básica deste procedimento não é o desejo de encontrar respostas ou fórmulas de resultado eficaz para a conduta com o paciente terminal, mas compreender as facetas deste sofrimento e as reações dos envolvidos neste processo. A idéia central desta leitura é fazermo-nos encontrar dentro desta historia de sofrimento que, contudo nao é uma derrota, uma falência, mas uma redenção.

“Tenho sede, tudo está consumado.”

A consciência de Cristo de saber-se nas suas últimas horas de vida é o vértice, o fenômeno que a sua paixão tem em comum com cada história de cada paciente terminal, daí a possibilidade de usarmos a paixão de Cristo como guia espiritual para melhor compreendermos e auxiliarmos aos nossos doentes.

A paixão de Cristo inicia-se fora dos muros de Jerusalém, no Jardim das Oliveiras. Estar fora da cidade significa também estar fora do convívio social e da vida cotidiana dos outros homens. O caminho de Jesus para fora dos muros da cidade, podemos entender como a retirada, a auto-exclusão do ritmo normal da vida. Ele ainda não está só, porém já se sente abandonado e/ou sente a necessidade de abandonar aqueles que ainda fazem planos e cultivam a esperança para o dia seguinte.

Fora dos pequenos ou grandes problemas ou das pequenas e grandes alegrias que a vida pode reservar, Jesus entra em agonia, uma agonia profunda e aterradora porque não há quem o possa acompanhar, aliviar ou entender sua dor e sofrimento: os discípulos mais próximos estão junto dele, mas dormem, são estéreis em oferecer-lhe alento.

A passagem da chegada dos capturadores de Jesus é o anúncio definitivo de suas últimas horas. Jesus parece resignar-se, aceita o inevitável, mas seu sofrimento não diminui porque agora vê-se abandonado por aqueles que lhe eram tão caros. Apenas dois de seus discípulos assistem de longe os acontecimentos.
Pilatos, o juiz último da sentença, está em dúvida; oferece alternativas ao povo perturbado e inflamado por idéias obscuras. Jesus está em suas mãos. A decisão pela condenação é tomada a partir do momento que Pilatos é posto em cheque, é ameaçado pelos outros atores da tragédia.

Na cruz, Jesus Cristo vê-se espoliado de seus poucos bens, repartidos entre pessoas alheias à sua história e ao seu convívio. Sente o escárnio indiferente daqueles que o convidam a sair da cruz através de um milagre. Agora porém não se sente tão abandonado, já que estão ao seu lado sua mãe e seu discípulo mais jovem: pede que eles fiquem juntos deste momento em diante.

“Tenho sede, tudo está consumado” O “sitio” – “tenho sede” que Cristo anuncia no evangelho de João pode ser interpretado por nós como a vontade ou força de viver prejudicada e ameaçada pela proximidade iminente da morte. É o homem Jesus ainda vivo no evento de sua morte. Enquanto que o “tudo está consumado” do mesmo evangelho è a sua despedida da vida de maneira serena e verdadeiramente ideal. È a morte como desfecho pacificado de uma biografia bem escrita. È a biografia dando sentido para a morte e a morte como realização da vida, principalmente porque não uma morte fechada em si mesma, como fato isolado de uma vida, mas uma morte que favorece a vida de outrem.

Transplantando a história da paixão e morte de Jesus Cristo para a situação em que se encontra o doente terminal, creio ser possível fazer uma analogia bastante sincera e verdadeira. O doente terminal, tendo consciência de seu estado, apresenta o mesmo processo fenomenológico. Ele sempre tem sede, aliás uma sede muito mais intensa e perceptível aos que o acompanham, enquanto que, paradoxalmente, apresenta os sintomas de uma vida consumada. O doente terminal quer viver intensamente o tempo que lhe resta, é eufórico ao sentir-se ainda vivo, mas esta euforia convive de maneira conflituosa com a depressão, com o tudo estar se consumando e se consumindo. O homem em fim de vida sente-se distante dos pequenos problemas cotidianos de familiares e amigos. As conversas sobre situações futuras que os que lhe são próximos lhe relatam são causa de constrangimento e sofrimento. Ele sente-se só em sua luta, está fora da cidade, está fora de sua vizinhança, está fora da lógica do próximo capítulo da novela, do novo modelo de carro que vai ser lançado, do novo plano econômico, do dia do casamento da vizinha simpática. Estar vivo até o momento em que se sentir cansado e dormir é tudo o que o ocupa e preocupa. Ao mesmo tempo ele quer ouvir, tem sede, de todas as histórias corriqueiras que possa ouvir e/ou participar, para sentir-se vivo. Esta tensão constante entre o ter sede e tudo estar consumado lhe causam a agonia, a agonia que lhe dá a força de pedir, implorar pelo bloqueio, pela paralisação do tempo, quem sabe uma droga nova, um novo exercício de fisioterapia, uma nova cirurgia. Mas o cálice da despedida já está pronto, basta servi-lo.

O doente terminal entra então no hospital, ou, se já nele, passa do quarto para a UTI. O cálice vai ser servido, o anúncio do início do fim foi proclamado. Assim como na captura de Cristo, o paciente se sente agora isolado: o ritual da morte começa. Seu julgamento se dá pelos aparelhos: são eles que dão os índices do quão próximo está de seu fim, são juízes frios e impassíveis, não há a quem recorrer. As visitas limitadas em número e tempo são o pouco conforto que recebe neste ritual.

Eis que surge o médico responsável pelo seu final de vida. Como Pilatos, sua situação é ingloria: ele deve ser a ponte de ligação, quase mesmo um anel viário – se me permitem a imagem – entre familiares e o doente, entre vida e morte, entre sofrimento aliviado exigido pelos parentes e estado de consciência do paciente, entre medicina e administração econômica da instituição, do convênio, do seguro saúde, entre sua própria humanidade, seu conceito de boa morte, de fé e ciência médica. Como Pilatos, o médico clama pela verdade. Qual verdade queremos adotar? Dopar o paciente até o seu fim, para que ele nem mesmo saiba que morreu? Será que esta decisão é muito mais digna ou confortante para a consciência dos circunstantes que, no fundo, não querem enfrentar a questão morte? Não seria um alento egoísta de nossa parte, porque seriamos nós a sentirmos asco na presença da morte?

O Doente está em sua cruz, no seu leito de UTI. Enquanto está consciente, nas visitas que recebe de seus mais próximos, pode ele tomar algumas decisões “administrativas”, pode também dizer palavras nunca ditas porque antes, achava que teria tempo. Todos nós somos assim: temos um arquivo enorme de pensamentos, sentimentos, perdões a dar e receber que sempre cremos, surgirá o momento justo; o tempo vai nos ajudar a proclamá-las. Da parte dos profissionais de saúde que assistem ao paciente, muitas vezes é possível percebermos a indiferença: palavras de vago alento, como se nada fosse: muitos tornam-se secos, frios, áridos, escondendo-se atrás da máscara do “politicamente e eticamente correto na lógica profissional”. Neste tempo final do paciente, tão intenso, perturbado, agônico, o paciente torna-se um profeta, um profeta que faz os circunstantes olharem para dentro de si, põe em xeque certos valores efêmeros. Mas são muitos os profetas que clamam no deserto…os ouvidos estão surdos, os olhos não enxergam, porque estamos revestidos com a nossa armadura fantástica de vida auto-suficiente.

Ter sede na consumação da vida é o estado agônico do paciente terminal que brilha profeticamente sobre todos nós. Todos nós temos sede, mas não nos sentimos com o tempo consumido, enquanto aqueles que tem morte subita, indolor ou não, tem o tempo consumado de tal maneira abrupta, que não conseguem manifestar a sede de vida. È por isso que considero este paradoxo presente, atuante e vibrante da vida e morte correndo novamente paralelamente no doente terminal, o leitmotif de qualquer espiritualidade e/ou comportamento a ser refletido por quaisquer dos atores nesta história de paixão e morte. O doente terminal é sinal profético de nossa própria situação quando ele põe em risco o nosso ideal de morte súbita.

O ideal da morte súbita está correlacionada, ao menos em parte, com o medo de dar trabalho, de cansar e atrapalhar a vida dos entes queridos. Mas até que ponto este medo tão altruísta não revela o nosso medo de ter de perder tempo com o próximo sofredor. De maneira mais simples e direta, tal medo não é espelho de nosso egoísmo? Em uma entrevista com o Dr. Pedro Geretto, por muitos anos chefe da UTI do Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo, ele me relatou que os parentes são os primeiros a pedirem o desligamento dos aparelhos que sustém o paciente em vida, a título de abreviar o seu sofrimento. Não nego e não repudio esta possibilidade. Posso entender o drama da familia. Porém estamos aqui para discutir o assunto dentro da dimensão espiritual. Ocorre-me então a pergunta: Não desejamos abreviar o tempo de vida do doente terminal porque na realidade esta condição bloqueia o nosso andar normal da vida, não paralisa os nossos projetos? Não devíamos nos perguntar até que ponto estamos absolvidos da acusação de egoísmo?

O ideal da morte súbita e inconsciente, durante o sono, é sintoma de nosso horror ao sofrimento, já que vivemos a cultura do lazer. Quando, portanto, desejamos a boa morte dos outros e nossa neste padrão, não estamos vetando a possibilidade do moribundo de tentar dar sentido ao seu fim resolvendo problemas pessoais que o angustiam? Porque devemos pensar que sempre é mais caridoso e humano sedar o paciente no seu fim? E se do seu sofrimento não lhe vem a força de pedir perdão, perdoar, dizer palavras belas a esposa(o), filhos, pais, amigos? Não estamos simplesmente lavando as mãos, como Pilatos, e impedindo que ele sacie sua última sede? Ofereceremos vinagre?

A pretensão não é criar uma polêmica infindável, não é provocar indisposição junto à classe médica e suas práticas, mas somente olhar a questão de outro ponto de vista, o ponto de vista do paciente que ainda tem sede de vida, para que em nossa meditação e vivência possamos elaborar, cada um de acordo com seus próprios princípios, a verdade.

Digo tudo isto porque lendo uma pesquisa elaborada pelo Dr. Piccelli, do Hospital Universitário de Brasilia, publicada na Revista da Associação Médica do Brasil, 1998, número 44, descobri que a maioria dos médicos não sabe lidar com a questão morte. Praticamente metade dos entrevistados teria receio de falar sobre morte em caso de atendimento de paciente terminal. A maioria dos entrevistados, quando confrontados com o assunto morte, procuraram informações em fontes leigas. Assusta-me um pouco que dentre estas fontes leigas estão incluídas as religiões. Causa-me estranheza considerar as religiões como fonte leiga para tal assunto. A anatomia e a necrópsia causam indiferença ao assunto morte (77%), basicamente porque é uma morte despersonalizada e sublimada através de um discurso tecnicista. Mas o interesse aumentou após os primeiros casos de pacientes terminais na fase clínica do estudo (80%). Somente na fase de residência médica aumenta-se o interesse pelo assunto morte, mesmo que a maioria ainda sinta dificuldades com o assunto, e sinta o despreparo no confronto com o doente terminal. Grande parte do problema reside no fato de que a morte faz lembrar a nossa finitude, o futuro desconhecido post-mortem e dores de perdas e lutos já inscritos na biografia de cada médico. O confronto como o doente terminal remete ao medo da própria morte. È por isso que, repito, o paciente terminal é sinal profético; por mostrar a nossa fragilidade, ele põe em dúvida os nossos esquálidos conceitos sobre o que seria uma boa morte. Quando soubermos oferecer a verdadeira boa morte aos nossos pacientes terminais, então teremos resolvido este nosso conflito. O conflito reside no fator tempo.

O ensino, a prática e a ética médica parecem ter transformado o assunto morte em um tabu. O avanço da medicina em manter pacientes terminais em vida através de aparelhos e procedimentos sofisticados está esbarrando na dificuldade de saber lidar com este ser humano. Tempos atrás certos estados do paciente o faziam perecer brevemente. A medicina contemporânea oferece ao mesmo paciente hoje, um tempo maior de sobrevida e isto é um avanço, uma dádiva louvável. Porém a pergunta incômoda à qual devemos buscar resposta é: para que servirá este tempo extra? È uma pergunta existencial. E creio firmemente que a resposta está em entender o conceito “boa morte”. Tal conceito não pode ser estabelecido exclusivamente na área médica. Outras dimensões da vida e ciência humanas devem participar desta elaboração como a dimensão religiosa e a Antropologia.

Como monge e sacerdote rejeito o ideal da morte súbita e inconsciente. O sofrimento pelo qual os homens passam em alguns processos de morte deve sim ser aliviado. Mas creio firmemente, e chego à inflexibilidade de minha opinião, que gerar a condição ao paciente de inconsciência é um erro grave. A medicina, se não pode mais auxiliar o paciente em alcançar a cura, deve cuidar dele. Cuidar do paciente terminal envolve uma série de ações complexas. A complexidade não se encontra talvez nos procedimentos e nos custos médicos, que quase se limitam em oferecer conforto físico ao doente, mas na exigência do trato pessoal do médico e assistentes para com a família e o próprio paciente.

Médicos, assistentes de saúde, familiares, amigos, administradores de saúde: todos estão envolvidos no processo de alento ao sofrimento agônico do doente terminal. Porque o que desejamos é que o sofrimento de nosso semelhante e/ou ente querido seja aliviado. Mas o que entendemos como alívio do sofrimento, já que este será inevitável, já que sobrevém como uma força intolerante e esmagadora?

Creio que os médicos devem conhecer a história do paciente, algumas partes essenciais de sua biografia. Devem tentar entender os membros da família, reconhecer o líder equilibrado dentre eles. Este deverá conhecer a verdade. Ele será o aliado, o agente tanto do doente como do médico na preparação para o fato da morte. O médico deve encorajar o paciente a expor suas angústias. A família deve permanecer o mais perto possível do moribundo. O paciente terminal deve haurir condições de fazer a passagem entre o ter sede para o tudo está consumado, esta é a boa morte. Uma morte preparada. Uma morte que é verdadeira despedida da vida. Uma morte que é consumação da vida.

O que é o preparar-se para a morte? Como dito, a morte elimina o nosso tempo e, durante a vida deixamos de resolver uma série de assuntos importantes pendentes porque sempre existe algo mais fútil ou de mais fácil resolução que priorizamos. Quando o doente terminal é encorajado pelo seu médico e família a manifestar questões pessoais e inter-pessoais, ele está enriquecendo seu tempo. Está quebrando antigas barreiras, deixando cair as máscaras, está se rendendo enquanto está enfrentando seus dramas. Expor ao outro, pricipalmente àqueles mais íntimos e amados a sua fragilidade, sua pequenez, suas tristezas, é um grande ato de coragem e de amor. Façamos uma visita a nós mesmos: Quantos fardos pessoais não carregamos todos os dias? Fazemos questão de suportá-los porque nos custa menos, nos é mais cômodo. Também fazemos de nossos dramas pessoais nossos companheiros porque temos medo de expô-los, temos medo de nos fragilizar perante o outro que, depois, pode nos ameaçar porque conhecedor de nossas mazelas. Aí encontramos o ponto crucial novamente: na vida excomungada da morte, temos sempre medo do que pode advir no futuro se manifestamos nossas fraquezas a outrem. Mas o doente terminal, o que tem a perder e a temer? Se este aceita o convite, mesmo que sutil, a expor-se, não terá ele vencido, sublimado a si mesmo? Nao terá ele a experiência balsâmica de render-se ao perdão, tanto aquele a oferecer e a receber? Eis o que podemos considerar uma boa morte preparada e pacificada. Eis que o último respiro há de valer toda a vida. Perceba-se que a proposta é espiritual mas não necessariamente religiosa. Eu não pretendo conceituar boa morte simplesmente a morte do doente confessado sacramentalmente, mas o homem em fim de vida, apaziguado com sua biografia escrita conjuntamente com outros homens. Obviamente não posso omitir que considero esta morte ainda mais culminante de uma vida se também houver a pacificação desta biografia junto ao nosso Criador e Deus.

O problema de Deus quando relacionado à dimensão morte é hoje assunto muito difícil. Todo homem religioso vive a mesma cultura ideológica de lazer que grassa no mundo. Mesmo os homens e mulheres de instituições religiosas, muitas vezes tem a mesma reação de desespero e incompreensão das pessoas leigas. Não existe maior blasfêmia e maior constrangimento a Deus do que um religioso, perguntado sobre o sofrimento do doente e de seus entes queridos, proclamar: “É porque Deus quis assim”.

È uma resposta cultural. O doente e a família querem uma resposta, querem o motivo do porque o sofrimento os atinge. Mais que isso querem saber quem é o culpado. Dizer que é a vontade de Deus significa dizer que não existe um culpado, que são circunstâncias próprias da nossa existência. Significa também que, apesar da tribulação momentânea, o doente e a família não estão desamparados, abandonados: porque se foi Deus que quis assim, ele tirará proveito da situação para a salvação de todos os envolvidos. Tudo isto é verdadeiro: não existe um culpado, mas Deus reverterá tal situação des-graçada em fonte de graça e salvação. Porém o doente em agonia, sofredor, entenderá de outra forma: “O que eu fiz a Deus para merecer isto? Porque Deus não gosta de mim?” O doente e os seus próximos podem se horrorizar de Deus, podem rejeitá-lo pela dor insuportável que sentem, podem culpá-lo pelo sofrimento pelo qual passam. A figura do sacerdote, pastor, guru espiritual ou quem quer que represente a divindade, deve auxiliar os envolvidos proclamando a proximidade de Deus a eles. Tudo que há de ocorrer não será em vão perante Deus. Ele, o representante da fé, deve ser o agente da esperança que proclama que toda a história do paciente é fonte de benção, que tudo foi bem feito, que tudo será consumado para o bem.

Cuidar do paciente para que ele tenha uma boa morte significa então prepará-lo para ela. Oferecer-lhe conforto físico, oferecer a companhia dos seus, encorajá-lo a não represar seus dramas e sentimentos. Como fonte de sabedoria deste processo devíamos ler o livro do Eclesiastes:
“Efêmero das efemérides, diz o Eclesiastes, efêmero das efemérides! Tudo é efêmero. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com o qual se afadiga debaixo do sol? Uma geração passa, outra lhe sucede, enquanto a terra permanece sempre a mesma. O sol se levanta, o sol se deita, apressando-se para voltar ao seu lugar, donde novamente torna a levantar-se. Dirigindo-se para o sul e voltando para o norte, ora para cá, ora para lá, vai soprando o vento, para retomar novamente o seu curso. Todos os rios correm para o mar, e contudo o mar não transborda; voltam ao lugar de onde saíram para tornarem a correr. Tudo é penoso, difícil para o homem explicar. A vista não se cansa de ver, nem o ouvido se farta de ouvir. O que foi, será; o que aconteceu, acontecerá: não há nada de novo sob o sol. Uma coisa da qual se diz: Eis aqui algo de novo, também esta já existiu nos séculos que nos precederam. Não há memória do que aconteceu no passado, nem também haverá lembrança do que acontecer, entre aqueles que viverão depois.”

Este belíssimo texto sapiencial é o retrato da angustiosa relação do homem com o seu tempo de vida, nada que ele fizer lhe resultará em alguma forma de perpetuidade. Mesmo que a nossa vista e nossos ouvidos não se cansem – esta é a sede do homem – tudo que nos é externo não sobreviverá a nós mesmos. Eis porque creio que no tempo final do paciente ele deve ser convidado a resolver seus dramas pessoais. Porque o que resta, o que permanece na memória de outros,da parte de nossa biografia, é o relacionamento pessoal. È a única forma de darmos sentido à morte. Jesus Cristo cumpriu definitivamente sua missão na cruz, quando pede perdão ao Pai aos que o levaram àquela situação. Se toda a história de Cristo se resume em nos ensinar o amor e a misericórdia uns para com os outros, é na cruz que ele nos dá seu testemunho definitivo oferecendo a nós a redenção. Eis porque ele pode proclamar que tudo está consumado, que sua história cumpriu-se.

O livro do Eclesiastes nos ensina mais:
“Tudo tem seu tempo. Há um momento oportuno para tudo que acontece debaixo do céu. Tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de colher a planta. Tempo de matar e tempo de salvar; tempo de destruir e tempo de construir. Tempo de chorar e tempo de rir; tempo de lamentar e tempo de dançar…” e assim por diante.

Considero o tempo último de vida do paciente o tempo de se reconciliar, o tempo de perdoar, o tempo de se preparar, o tempo de se render. O doente terminal tem este tempo que devemos considerar uma dádiva. È um tempo que não é como um freio acionado bruscamente que leva o automóvel a se desgovernar, mas um freio acionado aos poucos, prevendo o que sucede à frente, para que se possa levar o automóvel controladamente, se é que me permitem a imagem inusitada.

Concluindo o nosso encontro, reafirmo que o bem morrer depende de que o homem possa fazer a passagem serena entre o ter sede e o sentir-se realizado, render-se à sua biografia, apaziguá-la, consumá-la. O doente terminal tem a chance de fazer esta passagem.

O médico não deve colocar-se na posição de um curandeiro que, esgotando todas as chances de cura, lava as mãos e anuncia que somente resta esperar. Muito mais do que isso, ele deve ser o agente da promoção do cuidado com o paciente no seu todo: ser aquele que estimula todos os envolvidos, no tempo que resta ao doente, a participarem positiva e ativamente no processo. A omissão do médico, em nome de uma ética um tanto quanto discutível, apesar de polida, pode ser sinal de sua fraqueza interior. A educação formal institucional das escolas de medicina deveria atender à necessidade dos estudantes em tornarem-nos mais aptos ao confronto com a morte e com os pacientes terminais, conclui a pesquisa do Dr. Piccelli já citada. Estou informado que existe a tendência na construção de novos hospitais ou alas dos mesmos, em possibilitar que cada quarto possa facilmente transformar-se em um quarto de terapia intensiva. O fator economico é o grande limitador deste processo, porém vejo com esperanca e alegria que este tipo de tendência já é um bom fruto da percepção dos médicos sobre as limitações e/ou prejuízos que a UTI tradicional pode impor sobre o doente terminal, além de ser uma luz para um novo tipo de ética e de comportamento dos profissionais da saúde quanto ao drama humano envolvido em tais processos.

Vivemos em um mundo que nega a morte, vivemos drogados fantasiando a nossa imortalidade. Essa fantasia ou obscurecimento surdo do tema morte tem como bom efeito a construção da vida, porém causa desespero quando sai da sombra ruidosamente. Ninguém está perfeitamente preparado para o seu fim, mas o quanto mais auxiliarmos aos outros nesta passagem, nesta Páscoa da morte para a vida, mais cresceremos interiormente e os nossos dons e nossos frutos serão abundantes e poderemos encarar, na nossa própria passagem, a consumação de uma existência bem vivida, uma existência que fez sentido porque construimos um legado de amor indestrutível junto ao nosso próximo sofredor.

Que Deus nos ajude nesta grandiosa e fatigante empreitada. Deus nos abençoe. Obrigado pela paciência em me escutar.

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